segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis"




"Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno, e fazei brilhar para eles vossa luz perpétua."
(da oração inicial da Missa de Réquiem, pelo rito da Igreja Católica Apostólica Romana, e da Igreja Anglicana)

(Pelo Dia de Finados)





Seu nome, Cristina Batista. Nome e patronímico de grande significado. Eis que Cristina, derivado do grego “Christos”, “ungido”, latinizado Cristo, o Sagrado nome do Redentor; e Batista, do grego “baptistés”, latinizado baptista, aquele que benze, sacraliza um objeto profano.



Mas seu vir ao mundo, a escolha do nome, não foi, e nem a sua vida terrena, um ato de redenção, ou sagrado.

O caso foi-me entregue, penso que como um meio que meu orientador do estágio na defensoria criminal arranjou para se livrar de mim. Ele não foi com a minha cara, muito óbvio, uma quarentona no meio de jovenzinhas e jovenzinhos dispostos a tudo para agradar o mentor, não encontrou em mim essa atitude. Você não tem perfil para estar aqui estagiando, deveria era procurar um estágio no Ministério Público, você age como um Promotor de Justiça, disse-me ele no primeiro dia, na frente de meus jovens colegas. Fiquei. Mas, teimosa e voluntariosa (tinha lá ele razão?), eu me recusava terminantemente a trabalhar nos casos de assaltos e roubos, preferia outros, talvez mais sórdidos, mas que me diziam mais da miséria da alma humana.



Eis que o primeiro caso de Júri para a defensoria aparece. Sem discutir o caso, como sempre fazia com outros, entregou-me o processo, o caso é seu. Um colega que já havia estado lá no ano anterior, ao ver o nome na capa do processo, exclamou: nossa, esse vai ser difícil, é o caso da Negona, você não sabe da história? Não, eu não sabia, ia ler os autos. Acusação de assassinato, caso feio, um corte profundo no pescoço da vítima, com uma garrafa de vidro quebrado causou-lhe a morte. A pronunciada não estava presa preventivamente, a prisão havia sido suspensa, estava a viver na casa da irmã, pelo que li. Outros colegas já haviam por ali passado, saíram-se bem…

Convoquei-a, por escrito, para uma conversa antes da primeira audiência. Uma jovem magra, atlética, apareceu no dia e hora marcados. Brincou com meu orientador, seu velho conhecido, perguntou quem era eu. Apresentei-me, saímos do cubículo abafado do subsolo do Fórum, fomos conversar na área externa, sob o olhar meio espantado do meu orientador, como que a dizer “cuidado”.

Não me assustava. Conte-me o que aconteceu. Não matei, não fui eu, acharam mais fácil me acusar, porque me acusam de tudo o que acontece de ruim nesta cidade, como se aqui não tivesse um montão de bandidos. Mas preciso saber o que aconteceu na noite, conte-me sua versão. E coerentemente, ela me narrou a sua versão dos fatos.

Agora, fale-me um pouco de sua vida, pedi eu.

Saiu de casa aos seis anos de idade, talvez mais nova. Objeto de todo tipo de violência e abuso, preferiu na tenra idade o acolhimento das ruas, e dos sem abrigo. Inteligente, ia à escola, aprendeu a ler, a escrever. Mas nem a inserção várias vezes tentada e sempre frustrada na casa relativamente segura de sua irmã mais velha lhe proporcionava a segurança e a liberdade que conhecia das ruas. O andar à toa, os “amigos”, o álcool, as drogas. E, nesse mundo marginal, o crime. Pequenos furtos, alguns roubos. Uma acusação de homicídio quando era menor de idade, nunca apurada, não sei se verdadeira ou falsa, devidamente arquivada e longe das informações do sistema judicial.

Bem, vamos prosseguir então, não me vá faltar à audiência com o juiz. Não falto, prometo. Promessa, para mim, é dívida, Cristina. Para mim também, se eu prometo, eu cumpro. Afinal, eu sou a Negona, pode perguntar por aí. Não, você não é a Negona, aqui, você é a Cristina. Cristina Batista, esse é o seu nome. Riu-se, está bom, então, combinado.

Como foi a conversa? E você acreditou nela? Você acha que ela é inocente? Você pensa mesmo que ela vai aparecer no dia da audiência? Ela não vem, não se engane. Relatei o mínimo necessário. Acreditar ou não acreditar, culpada ou inocente, não tem a ver com a minha convicção, tem a ver com os fatos, professor, e ela, vem sim, ela me prometeu que vem. Vamos ver. Vamos.

Cumpridos os ritos processuais de praxe, o juiz encarregado: então, doutora (quem eu? ah, como eu detesto esse praxismo!), podemos marcar o júri para a primeira semana do segundo semestre? Como queira, excelência, por mim, tudo bem. Olhei para meu orientador. Sua cabeça, calva, estava mais vermelha que um pimentão maduro. Hum, hoje ele me esgana. Bem, doutora, irônico, na volta ao cubículo, ainda faltam mais de dois meses, dá para se preparar? O que o senhor acha, deve dar, fazemos uma força, não sei (afinal, a responsabilidade sempre seria dele), se o senhor acha que não dá, porque não disse para o juiz? Não, está tudo bem. Eu fico com a parte legal, você faz a pesquisa social, vê aí se pode arranjar alguma testemunha de defesa, porque as da acusação são boas. Na minha opinião, pelo que li, não são assim tão boas, professor, parece não haver nenhuma que tenha realmente presenciado o acontecido. Você não tem experiência, espere para ver. Está bem.



Tudo estudado e planejado, expliquei para as duas assistentes sociais porque queria que elas falassem no júri. Preparei-me. Escrevi o maldito discurso introdutório (outro castigo, aposto, porque ele não pode iniciar a fala da defesa?) eu, que detesto aqueles salamaleques todos, toca a tecer loas ao juiz, ao promotor, ao nobre colega orientador, aos jurados. Epa, não posso esquecer a meia dúzia de gatos pingados que aparecerem (sempre foram umas duas ou três colegas mais chegadas da faculdade). Ah, tenho que falar da minha filha! Ela estará de escrivã,é a estagiária do Juízo escalada para a transcrição do julgamento do dia. Coitada. Vai ver a mãe dar bandeira. Fazer o quê? Filha sofre!

Faltava um mês, início das férias. Meu orientador me chama. Vamos desistir do caso da Negona, vou falar com o juiz para nomear outro, é muito difícil. Fiquei chocada. Faltaram-me as palavras, porque eu queria era chorar de raiva! Não, não era pelo trabalho, pelo estudo do caso, pelo tempo despendido nas minhas horas de folga do trabalho, faculdade e estágio. Era um sentimento de frustração, de abandono, de revolta. Mais uma vez abandonada. Não, professor, o senhor não pode fazer isso, só falta um mês, está na pauta, vai ser adiada, e se ela for presa de novo? Bem, menos uma na rua. Mas é a sua função, professor! Sua obrigação! Não posso fazer o júri sem o senhor e eu não desisto, bati o pé, literalmente! Vermelhou, pensou, coçou a calva… Que mulher chata! Vou pensar, vou falar com o juiz, depois aviso.

Nunca soube se falou ou não, mas, no último dia da primeira semana do júri do mês de Agosto, lá estávamos nós! (Eu de tailleur novinho em folha, azul marinho e branco, sapatos a condizer - comprados a prestação, é claro, meu indispensável baton vermelhoparatodasasocasiões. A Cristina muito limpa, e arranjada nos seus jeans e camiseta, novos, e tênis idem, presente dos amigos). Pânico, medo, pavor! Meu Deus, tenho que falar em público! Onde eu estava com a cabeça. Não vai sair nada quando eu falar da tribuna! Deixa de ser burra, está tudo escrito, é só seguir a linha de raciocínio. Que castigo, bem que o professor tinha razão, não vou aproveitar quase nada do que escrevi, o promotor já desmontou tudo antes de eu começar! Rabisca, rabisca, escreve, escreve, assim não pode mais, tem que improvisar. Seja o que Deus quiser!

E foi. Absolvida. O famoso 4 a 3! Na hora da leitura da decisão dos jurados, pude ler nos olhos, quem havia votado culpada, quem havia votado inocente.

Seu sorriso, de quatro dentes incisivos postiços, os penso outrora bonitos havia perdido numa briga. Eu sabia que ia dar certo! Sabe, agora posso seguir meu sonho, ser jogadora de futebol. Um time lá de Ribeirão Preto quer me contratar. Mesmo? Que bom, então, boa sorte, que Deus acompanhe você.

Você agora é como minha mãe. Eu? Por que isso? Porque você me defendeu. Você pode andar tranquila nas ruas que ninguém vai chegar perto de você. Que é isso, menina? É que já falei pra todos os meus amigos que você é minha protegida, ninguém toca nem você nem sua família! (Santo Deus!). Ah é? Obrigada.



Não foi jogar futebol. Voltou para as ruas. Um dia, telefonou-me, desvairada, devastada pelo crack, pedindo socorro. Precisava de ajuda. Não queria mais ficar nas ruas, queria ir para uma fazenda, tratar-se. Traga-me umas roupas? Quero tomar um banho, leva-me para o abrigo, eu prometo que me comporto, eu fico bem. Certo, vamos.



Telefonei, pedi. Não, é impossível. Incontáveis vezes reincidente, não a aceitavam mais em nenhuma fazenda.

Uma noite, telefonou-me: estou presa, vem me ver. Presa? Sim, eu matei um cara, meu ex-cunhado. Uma facada só, bem no coração. A polícia “me pegou flagrante”. Por que, Cristina? Não sei, brigamos, vem me ver? Pode trazer cigarro? Sabonete, desodorante? E dinheiro? Dinheiro, não.



Porque você não pode me defender desta vez, perguntou-me pelo vidro do presídio. Não estou mais na faculdade, Cristina. Não atuo nessa área, você precisa de um bom advogado criminal. Mas vão me nomear um qualquer, e eu não quero. Dessa vez, eu matei, mesmo. Não diga isso. Mas é verdade. Vou conversar com uma pessoa em quem eu confio, foi meu professor, agora é defensor público, do Estado, ele é novo, mas é muito bom.

Sei que ele se esforçou, e muito. Mas eu sabia, e ela sabia, que seria em vão. Foi transferida para longe, para o sul do Estado. Não a vi mais. Noticiaram-me, quando voltei, que ela morreu na cadeia. Numa briga? Assassinada? Não, a Aids a levou.



Dorme, menina, dorme…


"nam et si ambulavero in medio umbræ mortis non timebo mala quoniam tu mecum es virga tua et baculus tuus ipsa me consolata sunt" (Liber Psalmorum, 22,4 - Vulgata)
(ainda que eu ande pelo meio do vale da sombra da morte não temerei mal algum pois a teu bastão e teu báculo são o meu amparo)

*
P.S.: Os nomes dos demais coadjuvantes foram propositalmente omitidos, mas o processo foi público, e está encerrado. A personagem principal, espero que finalmente tenha encontrado a PAZ e o ABRIGO que sempre procurou.
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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

**************"Teclado me ajude"**************


"Teclado me ajude, em nome do Pai do Filho e
do Espirito Santo, e do Anjo do Teclado
( que nao é o Frank Aguiar)”

(By Lidiane Ferreira, em “Despedida”)


Gente. Foi um arraso! Ela chegou e iluminou tudo com seu sorriso! Conquistou a dona da casa (a Stella Maris, uma golden disposta a adotar quem lhe dá carinho, e ela teve de sobra!), conquistou minha filha, amigos, até a preocupada Camila (ai, e se ela for igual à Ivone da novela? Kkkk, ô Camila!) e a circunspecta Flávia, meus netos, minha nora, todo mundo! Abalou Gerais! Abalou o interiorrrrrrrrr…


Há cerca de três anos, eu a conheci. Através da net, e por intermédio de meu marido, que nos “apresentou”. Por acaso, ou nem tanto. Nem sei se acredito em acasos. Penso que para tudo na nossa vida, tem um propósito de Deus. Penso que ambas ficamos um pouco reticentes por algum tempo, principalmente porque não sou, ao contrário dela, uma pessoa que demonstre afetividade.


Internautas habituais, aos poucos, fomos falando, “conheci” seus filhos, a Keysy, o Isaac, que sei lá porque, gostaram de mim. Adotaram-me. Madrinha Margareth, de Portugal. Mantivemos contacto desde então, às vezes esporádicos, às vezes mais próximos, dependia dos humores e das conexões.


Dona de um senso de humor peculiar, ela comentava com graça as nossas desgraças, nessas inconfidências que às vezes cometemos ao falar com os amigos. (Ah, as desgraças da vida, que nem sempre compreendemos, e que não sabemos enfrentar, fui entendendo o quanto essa jovem mãe enfrentava as suas, com fé, e esperança. E me sentia pequena.)


(E, nesses revezes que a vida dá, eis-me de volta à boa terra das Gerais, pedaço desse abençoado Brasil.)

Ela tem uma mania: coloca fotos dos amigos no orkut. Provocando, deixei um recado sob uma foto minha ”Ah, agora falta uma foto de nós duas juntas, né? Já que atravessei o mar salgado, você bem que podia cumprir sua promessa e descer a Serra da Saudade até aqui! Estou esperando”.


Dia desses, lá vem a pergunta do Márcio, o irmão: Margot, você vai viajar na semana da criança? Não, por que? Ah, nada não. Pouco depois, a notícia: as passagens da Lidi estão compradas, ela chega aí dia 10. Ora, deixa de brincadeira! É sério!

Expectativa, umas duas semanas "em pulgas"!. No dia marcado, cedinho, lá estávamos a minha filha Lívia e eu na rodoviária à espera da menina! E a vi ainda dentro do ônibus, segurei para não chorar, que isso, é hora de alegria, não assusta a moça! Um abraço apertado, finalmente!







Dias abençoados. E, nesse pequeno espaço de uma semana, aprendi tanto, com sua alegria, seu amor pela vida, seu carinho com as pessoas, com os animais. Sua fé. Sua força. Nunca uma queixa, nunca um momento de mau humor (nem quando teve que ficar horas amargando umas músicas breganejas no boteco, ela que é da capital, coitada!). Às vezes, um olhar pensativo denunciava a saudade dos filhos que ficaram aos cuidados da cunhada, e da avó. E o mal-estar com o calor triangulino. Nada mais.

Ah, Deus, obrigada por me fazeres ver o quão pequena eu sou! E obrigada pelo quanto me fizestes grande, por ser merecedora dessa amizade!


Lidiane, receba todo o meu, o nosso carinho. E, em breve, voltamos a nos encontrar, a “Titia”, as “pimas” todas. Na próxima temporada. Aguarde!


Pssssiuuuuuu: tá bom, eu conto: ela não conquistou a Nina, mas vocês já viram bicho mais renitente que poodle?









quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Histórias Curtas I – O Elevador


Trabalho part-time. Fins de semana e feriados. Chatice, eu precisava da grana, pagar o curso de pós-graduação que me mantinha ocupada de segunda a sexta-feira. O trabalho compensava, pagavam bem para eu vender p’rós brazucas as “facilidades” e “vantagens” de uma conta num banco brasileiro lá nas estranjas.

E lá ia eu para a margem sul, tempo frio, chuva, distância. Fins de semanas alternados, tinha uma companheira de viagem. Minha enteada, adolescente, grudava comigo, madrugávamos (ai, MB, é longe, mas eu quero passar o dia contigo, levo meus livros, estudo lá). Saíamos, cheias de frio e sono, comboio, outro comboio. Um colega ia buscar-nos na última Estação de Comboio.

Um belo dia, o carro velho do meu colega pifou, e ficamos na mão, melhor, a pé. “Vócês” podem tomar o autocarro que passa na auto-estrada. Como? É só subirem o elevador, o auto-carro passa às 10 menos um quarto. Faltam uns 8 minutos. Dá tempo.

Elevador novinho em folha, uma parede panorâmica. Lá em cima (alto p’rá burro), apertamos o botão para a porta abrir. Nada. Apertamos de novo nada. Esperamos, toca a carregar. Nada. Carrega no botão da emergência. Nada. As pessoas lá em baixo, formigonas, nem olhavam para cima, não adiantava acenar! Começamos a entrar em pânico. Que fazer, ai MB, preciso fazer xixi, ai meu Deus, eu tenho que chegar logo, as chaves do balcão ficam comigo, como eu faço, ‘tô ferrada, chefe não atrasa! Abre, porta, abre-te sésamo, ave-maria, socorro…

Calma, calma, vamos pensar. Silêncio. De onde vem esse barulho? Escuta, C..., escuta. Vamos procurar. Vira daqui, vira dali. Tuque… E uma porta do outro lado do elevador a abrir e a fechar, umas pessoas lá de fora a nos olharem espantadas… Tuque, tuque…

Saímos esbaforidas, correndo, acenando, atravessamos a rua, e o motorista do auto-carro, parou e nos deixou entrar, rindo de nós duas...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Festa do Rosário

É uma lembrança que me vem desde a mais tenra idade que a minha memória pode alcançar, meus 4, 5, 6 anos. Eu sabia que se aproximava a festa. Dias antes do foguetório da alvorada inicial, o nhé, nhé, nhééééééé interminável dos carros de boi vindo pela rua de terra batida, que passava ao lado de minha casa na esquina da praça, ouvia-se quando ainda vinham ao longe, lá de cima, daquele bairro pobrezinho onde eu não podia ir. Eu implorava à minha mãe para ir à rua, deixa mãe, posso mãe, deixa a menina ir, dizia meu pai, está bem, se a Judith estiver desocupada pode ficar com você lá na porta, mas não suja a roupa, olha a poeira, não saia do passeio, não solta a mão da Judith, olha o homem do saco!

E eu, aflita, em minha curiosidade, saía, maravilhada, a ver aqueles bois enormes, duas, três parelhas, às vezes apenas uma, os homens à frente, a incitar os bichos, com longas varas de ferrão, mulheres e crianças empoeiradas sentadas com as pernas penduradas, atrás dos carros, protegidos por entrelaçados de vime, cobertos de capim, cestos com galinhas a enfiarem bicos e olhos interrogativos para fora e a girar as cabeças curiosas. Vinham juntos, vinham separados, eram dias e dias, viravam à direita na esquina da casa senhorial da D. Vergida, sumiam lá para os fins da Rua Riachuelo (outro lugar proibido, só podia ir lá com a Judith, à benzedeira, mas nunca na época da festa).

Depois, eram as barracas de bugigangas. Parecia que brotavam do chão, da noite para o dia. Bonecas (horrorosas, lembro hoje, mas na época, como eu não podia tê-las, achava-as lindas!), iôiôs, violetas, carrinhos, balões, bilboquês, ah, que maravilha eu queria tanto um bambolê, e um arco, e um diadema e marias-chiquinhas para colocar nos cabelos… Não pode. Mas pode ir com a Judith e comprar algodão doce e pipocas para você e seu irmão. Judith, não vá com a menina ao lado de cima da praça, lá o ambiente não é bom, segura a mão dela, esses barraqueiros… Ver o parque de diversão? Não pode não (esqueceu que esfaquearam lá o filho do Batata do bar, Judith? E as mulheres da vida? Cochichava). E eu fitava com os olhos compridos o bambuzal da casa do Sr. Geraldo da D. Abadia, que escondia aquela coisa perigosa que devia ser o parque! (Será que tinha sangue, o que é mulher da vida, indagava a mim mesma, sem coragem de verbalizar).

O foguetório anuncia o dia do início das novenas a Nossa Senhora do Rosário. Todas as noites, da armação de capim no meio da praça, eu ouvia as músicas e a voz do locutor: olha o bingo, vamos entrar, agora é um prato de pastel e uma cerveja, olha o frango assado, dois patinhos na lagoa, 22, meia dúzia, 6, o patinho solitário, 2…

Festa de Nossa Senhora dos Pretos. Porque Nossa Senhora do Rosário dos Pretos? Deixa de ser boba, menina! Mas eu já sabia, era por causa da Congada! E por que a Congada só tem pretos? Que menina boba! Mas eu posso ir ver a Congada? Pode, vai ver pela janela, pela janela não quero, quero ir ver lá na praça. Na praça não pode, olha os barraqueiros, eles roubam crianças. Espera alguém desocupar. Com o coração na mão, eu saía, agarrada à mão da Judith, ou do meu pai. Que maravilha! As roupas de cetim, brancas e azuis, brancas e verdes, brancas e vermelhas, enfeitadas de fitas multicoloridas eram uma festa para os olhos. O canto gritado, os sons dos tambores, violas, sanfonas, violões, reco-recos, enfiavam-se pelos meus ouvidos, os passos pulados da dança, iam até a minha maravilhada alma infantil. Quanta dignidade no Capitão, na Rainha! Nunca pude ultrapassar o limiar da calçada da casa onde morava. Nem pude ir aos terços ou às novenas, nem ver de perto a dança e o canto junto ao cruzeiro de madeira, ao andor e ao altar da Santa depois da procissão final. Nossa Senhora, é verdade que a senhora escuta tudo? Por que eu não posso ir?

(E, nessa ânsia pela minha proteção, na falta de respostas às minhas indagações, nas proibições das pequenas coisas sem sentido, fui perdendo a minha inocência, na minha observação silenciosa do meu pequeno vasto mundo, mas também fez crescer em mim a busca permanente de Deus.)

Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Mãe de todos os Homens, de todas as condições e profissões, acolhei a todos nós no seu abraço de Paz. Pretos, brancos, amarelos, vermelhos. Homens e mulheres. Santos e pecadores, devolvei a todos a inocência dos olhos e da alma das crianças. Amém.


(A Igreja Nossa Senhora do Rosário deste post)

Uma nota: Ainda hoje, emociono-me e sinto um nó na garganta, quando ouço o batuque das Congadas. No ano de 1988, fui agraciada com o convite do Pe. Geraldo para ser uma das festeiras organizadoras da Festa do Rosário! Deu uma trabalheira, mas foi um sucesso. E a emoção maior foi quando os congueiros tocaram e dançaram em nossa homenagem, depois de o fazerem para a Santa! Foi difícil esconder as lágrimas!

Obrigada, Nossa Senhora do Rosário Mãe de todos os Homens!



"Nossa Senhora do Rosário dai a todos os cristãos, a graça de compreender a grandiosidade da devoção do Santo Rosário, na qual, à recitação da Ave Maria se junta a profunda meditação dos Santos mistérios da vida, morte e ressurreição de Jesus, vosso Filho e nosso Redentor.
São Domingos, apóstolo do rosário, acompanhai-nos com a vossa bênção, na recitação do terço, para que por meio desta devoção à Maria, cheguemos mais depressa a Jesus, e como na batalha de Lepanto, Nossa Senhora do Rosário nos leve à vitória em todas as lutas da vida; por seu Filho, Jesus Cristo, na unidade do Pai e do Espírito Santo.
Assim Seja.
Amém."
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(Dia 7 de Outubro comemora-se o dia de Nossa Senhora do Rosário)
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Outra nota: quando eu tinha meus 8, 9 anos, descobri que uns moleques da vizinhança conseguiam abrir a porta lateral que dava à sacristia da Igreja. Escondida, às vezes eu ia lá, ficava o que me pareciam horas, (segurando o medo das andorinhas e dos morcegos que viviam lá, porque eu nunca sabia qual deles voava bem rente ao teto alto), e me maravilhava vendo a imagem de Nossa Senhora do Rosário com o Menino Jesus nos braços, e eu sentia ambos a me olharem em qualquer lugar que eu estivesse, o que me dava um misto de júbilo e culpa... (Nós nos mudamos da praça, e só voltei lá muitos anos depois).