segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Histórias Curtas II - Lições (1)






Precisava ir aos Olivais. A noite, o frio, a chuva e o vento desconvidavam, mas tinha que ser. Bem agasalhada, toca a esperar o comboio.

Uma senhora, bem idosa, também aguarda na estação gelada. Sentada a meu lado no banco, olha-me de lado, desconfiada. Aceno a cabeça num cumprimento, e sorrio. Olha-me com os olhos opacos da velhice, cabelos brancos, um tanto gorducha, toda encolhida nos seus inúmeros agasalhos. Não retribui o cumprimento.

A espera, já normal para mim, a deixa impaciente, notava-se bem.

Vencida pela demora, ela pergunta-me: "vócê sabe a que horas passa o comboio de Alcântara Terra?" - articula a boca desdentada. Sim, minha senhora, já está a vir, veja, lá vem. Mostro as luzes da composição fazendo a curva a uns cem metros de distância.

"Parece impossível, esses brasileiros já estão até aqui? Por isso é que meu filho está em França, vócês vêm aqui p'rá ficar com nosso trabalho, fazer aumentar a renda das casas, e as mulheres vêm tomar os maridos das outras, todas *!"~#~*#~#*...". O olhar ausente transmuta-se em ódio. Lépida, levanta-se, com o chapéu-de-chuva na mão, e numa agilidade inimaginada para a idade e o peso, salta para dentro do comboio...
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

"No dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho!"

Uma pausa no tempo, quando o Inverno ameaça adentrar e engolir o Outono, tardes agradáveis, cheias de sol, o frio a espreitar de longe. "Verão" de São Martinho, três ou quatro dias em que quase se pode esquecer que o inverno bate à porta no hemisfério norte. O ápice se dá no dia 11 de Novembro.

Para ser fiel à lenda (ou será tradição?), o acolhimento dado a mim por meus novos (e verdadeiros) amigos em Portugal deu-se no dia de São Martinho. Foram os primeiros a acolher-me em sua casa. Escolheram a tradicional comemoração, para mim até então desconhecida. Parte da tradição portuguesa, mesa farta, vinho, castanhas assadas bem quentinhas, vinho novo, aguapé (uma espécie de mosto que se tira do vinho novo, fraquinho, de cor rosada), delicioso chouriço assado no braseiro, pão, queijo, batata doce e marmelo assados, o delicioso caldo verde. Meus São Martinhos pessoais, saudades de vocês, muita mesmo, não daquela saudade triste, não, saudade boa, com que nos lembramos daquelas pessoas que nos fazem bem!


Ah, e tem as comemorações ribatejanas. Não sei como comemoram pelos portugais afora, mas no Ribatejo, a população reúne-se nas praças dos lugarejos, no dia 11, ao cair da tarde, e lá vem o desfile dos Zé Pereiras, bonecos enormes, equilibrados nos ombros mais fortes, bandinha a tocar, molecada atrás (criança é igual em todo lugar, basta-lhes um pouco de liberdade). O Presidente da Câmara, os coros locais, as figuras conhecidas em lugares estratégicos, a servir o tradicional magusto: aguapé, a assar o courato (pele de porco fresca), a cozinhar as bifanas para rechear as fatias grossas do delicioso pão, os velhotes das castanhas. Música, cantoria e danças, artesanato nas banquinhas improvisadas, uma simpatia alegre [será o aguapé? :-)].

Bons momentos eu vivi no São Martinho, daqueles que alimentam o corpo e o espírito, aquecem o coração e alegram a alma…




São MartinhoApelidado de apóstolo da Gália: primeiro Santo cristão não mártire, sua generosidade e humildade, aliadas a uma enorme fama de milagreiro fizeram dele um dos santos mais queridos da população europeia.

Diz a lenda que Martinho, nascido na Hungria em 316, era soldado. Aos 15 anos de idade, vai para Pavia (Itália). Em França abraçou a vida sacerdotal, sendo famoso como pregador. Foi bispo de Tous.

Certo dia de Novembro, muito frio e chuvoso, estando em França ao serviço do Imperador, ia Martinho no seu cavalo a caminho da cidade de Amiens quando, de repente, começou uma terrível tempestade. A certa altura surgiu à beira da estrada um pobre homem a pedir esmola.

Como nada tivesse, Martinho, sem hesitar, pegou na espada e cortou a sua capa de soldado ao meio, dando uma das metades ao pobre para que este se protegesse do frio. Nessa altura a chuva parou e o Sol começou a brilhar, ficando, inexplicavelmente, um tempo quase de Verão

Mas em França há quem associe a expressão "Verão de S. Martinho" ao fato milagroso de terem florido as plantas, reverdecido as árvores e os pássaros terem começado a cantar, à passagem do corpo do Santo, levado de barco de Candes, onde tinha morrido, para Tours onde foi enterrado.



Provérbios de S. Martinho:
• A cada bacorinho vem o seu S. Martinho.
• A cada porco vem o seu S. Martinho.• As geadas de S. Martinho levam a carne e o vinho.• Dia de S. Martinho vai à loja e prova o vinho.• Dia de S. Martinho, lume, castanhas e vinho.• Dos Santos a S. Martinho são nove dias de pão e vinho.• Em dia de S. Martinho atesta e abatoca o teu vinho.• Em Novembro S. Martinho vai à adega e prova o vinho.
• Em Novembro S. Martinho, lume, castanhas e vinho.• Em Novembro se queres pasmar teu vizinho, lavra, sacha e esterca pelo S. Martinho.
• No dia de S. Martinho assa castanhas e molha-as em vinho.
• No dia de S. Martinho fura-se o pipinho, mas quem for honrado já o deve ter furado.
• No dia de S. Martinho mata o teu porco e bebe o teu vinho.
• No dia de S. Martinho mata teu porco, chega-te ao lume, assa as castanhas e bebe o teu vinho.
• No dia de S. Martinho vai à adega e prova o vinho.
• No dia de S. Martinho, come-se castanhas e bebe-se vinho.
• No dia de S. Martinho, fura o teu pipinho.
• No dia de S. Martinho, lume, castanhas e vinho.
• No dia de S. Martinho, mata o teu porco e bebe o teu vinho.
• No dia de S. Martinho, mata o teu porco, chega-te ao lume, assa castanhas e prova o teu vinho.• No dia de S. Martinho, vai à adega e prova o teu vinho.• Novembro pelo S. Martinho, comem-se as castanhas e prova-se o vinho.
• Novembro pelo S. Martinho, mata teu porco e bebe o teu vinho.• Novembro pelo S. Martinho, nem nado, nem cabecinho.
• Novembro pelo S. Martinho, prova o teu vinho; ao cabo de um ano já te faz dano.• Novembro pelo S. Martinho, semeia o teu cebolinho.
• O Sete-Estrelo pelo S. Martinho, vai de bordo a bordinho; à meia-noite está a pino.• Pelo S. Martinho abatoca o pipinho.
• Pelo S. Martinho bebe o vinho, deixa a água para o moinho.
• Pelo S. Martinho castanhas assadas, pão e vinho.• Pelo S. Martinho deixa a água para o moinho.• Pelo S. Martinho mata o teu porquinho e semeia o teu cebolinho.• Pelo S. Martinho prova o teu vinho; ao cabo de um ano já não te faz dano..
• Pelo S. Martinho todo o mosto é bom vinho.• S. Martinho bebe o vinho, deixa a água para o moinho.
• Se o Inverno não erra o caminho, tê-lo-ei pelo S. Martinho.
• Se queres pasmar o teu vizinho, lavra, sacha e esterca pelo S. Martinho.• Verão de S. Martinho são três dias e mais um bocadinho.• Vindima em Outubro que o S. Martinho to dirá.






(Na foto, eu entre dois bonecos Zé-Pereiras na comemoração do S. Martinho em Vialonga, Ribatejo, 11/11/2008)

domingo, 1 de novembro de 2009

ESSÊNCIA

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Do ar,
da terra,
das montanhas,
das matas,
dos rios,
do céu,
construíram minha essência.
Meu espírito é seu espírito.
(Nasci em Minas Gerais, Minas não tem mar.... O mar de Minas é o céu).
Torrão amado,
terra sangrada,
espoliada,
batalhas e lutas.
Perdidas?
Jamais derrotada.
Libertária,
liberta,
renovada.
Berço de liberdade.
(ainda que tardia).
De Tiradentes,
dos amores,
das dores,
de Dirceus e Marílias.
Aleijadinho.
Drummond,
(No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho).
Juscelino,
Josés, Marias.
Das minas,
das cidades,
das montanhas,
e dos campos,
lavradores.
Das serestas sob a lua,
trem de ferro,
(... da Bahia Minas estrada natural.
Que ligava Minas ao porto ao mar.)
Fé,
terço,
procissão.
Cantigas, cantares.
(Como pode o peixe vivo viver fora d'água fria,
como pode o peixe vivo viver fora d'água fria).
Flores na rua.
Roupas no varal.
Cachaça,
diamantes,
água,
(São Francisco, o sertão vai virar mar?)
ouro.
Doce de leite,
goiabada,
queijo fresco,
pão-de-queijo,
cafezinho,
a vizinha passa o bolo pelo muro do quintal.
Da moça na janela.
Moço bonito,
(como poderei viver, como poderei viver,
sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?)
Dos causos contados à beira do fogão.
Saudades,
enterros,
festas.
Do sagrado,
do profano.
De todos seus filhos,
poetas,
mártires,
cantores,
artesãos.
Humanos,
pecadores.
Minas Gerais.
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(* Rubem Alves - O pequeno barco de velas brancas)
(* Carlos Drummond de Andrade - No meio do caminho)
(* Milton Nascimento - Ponta de Areia)
(*Do folclore, coreto mineiro de origem lusa)