terça-feira, 22 de setembro de 2009

Muralha da China




Chegaram sem fazer barulho, calmos, quietos, discretos.

Uma manhã, olhei pela janela da frente, vi a porta do antigo estabelecimento, fechada há mais de dois anos, aberta. Através dos vidros ainda empoeirados, protegidos por grades, prateleiras cheias de roupas, e bugigangas. Uma cabeça discreta assomando pela pequena porta, denunciou: era uma lojinha de chineses.

Arranjei uma desculpa, fui à mercearia, onde sempre se sabia das novidades, nem precisava perguntar. “Os chinas já estão até aqui na rua, não dou um ano p’ra fecharem as portas”, vaticinou o merceeiro. (Que agourento, meu Deus!)

Saí da mercearia, entrei na porta ao lado. Um homem sem idade, com os cabelos escuros ligeiramente salpicados de branco, acolheu-me com sorriso formal, e um cumprimento em péssimo português. Assomou ao fundo uma cabeça de mulher, a olhar, tímida, calada. Eu disse bom dia a cada um, separadamente. A mulher abriu um grande sorriso, que, mais que me comover, fez-me sentir uma doída dor de saudade. Duas estrangeiras numa terra estranha.

Estabeleceu-se instantaneamente entre nós duas uma forte vontade de comunicação, mas a barreira da língua parecia intransponível. Ela não falava nem entendia português, nem inglês, e eu, mandarim, só ouvi nos filmes do Jack Chan…

Todos os dias, eu lhe acenava da janela, e ela acenava de volta, com aquela ligeira inclinação de cabeça, tão delicada, que só os orientais conseguem fazer.

Com a desculpa de comprar meu incenso de canela, ia à loja. Tentava estabelecer um diálogo. Eu apontava uma coisa, e dizia o nome em português, o senhor sorria, e a mulher repetia, apontava a mesma coisa, e dizia a palavra chinesa correspondente. Tentávamos repetir o que a outra dizia, ríamos das nossas recíprocas algaravias, eu pagava o incenso, ia embora.

Com o passar do tempo, tive que inventar outras pequenas necessidades, um dia era linha, outro, agulhas, prendedores de roupa, porque o incenso passou a me ser oferecido. Sempre com um sorriso e não categórico acenado pelo marido, quando eu colocava a moeda de um euro sobre o balcão.

Aos poucos, ela foi perdendo o que eu nunca descobri se era timidez, ou aquela desconfiança atávica, tão tipicamente oriental. Um dia, ao sair com minha cachorra à rua, lá estava a senhora à porta da minha casa, sorridente, para me dar bom dia. Em português capenga, mas na minha língua!

E por gestos e palavras soltas, fomos nos conhecendo, ela duas filhas, uma na França, outra em Portugal, uma neta de onze anos.

Expressei  o desejo de lhe ensinar português. Estás louca, como vais colocar aqui dentro de casa uma pessoa estranha?. Para não me chatear, por comodismo, por preguiça, coloquei o projeto numa prateleira da memória. Mais tarde, eu não vou desistir.

Um dia, não a vi chegar. Mais uns dias ausente, perguntei ao marido. Está na casa da filha, deu-me a entender. Mas aparentava uma certa tristeza.

Uma batida tímida no meu ombro, dentro do comboio quando voltava de uma audiência em V.F.X.. Assustei-me, olhei, e lá estava minha amiga, sorrindo, abatida. Em suas mãos, junto com a mala, uma sacola de farmácia. Apontei a poltrona a meu lado, ela sentou-se. Voltamos juntas, apontando aqui um barco a vogar pelo Tejo, ali um arbusto de giesta, acolá a cana teimosa debruçada sobre o rio. Pedaços de paisagem que eu tentava traduzir em palavras incompreensíveis ao seu ouvido oriental.

Alguns dias depois, viajei para o Brasil. Voltei após quatro meses. Fui ver minha amiga. Voltou para China, disse-me o marido. Eu repeti, incrédula: ela voltou para China, voltou para casa? Ele abanou a cabeça, suspirou, sorriu-me, tentando esconder a tristeza. Ofereceu-me uma caixinha de incenso. No início da última primavera, da mesma forma que chegou, ele também partiu.

domingo, 20 de setembro de 2009

Língua, Pátria, Identidade


No meu primeiro post, afirmei que portugueses e brasileiros, embora falemos o mesmo idioma, não falamos a mesma língua. (E não houve, nem há, nessa afirmativa nenhuma animosidade ou xenofobia. Em Portugal estão pessoas que amo, e Portugal é minha segunda Pátria!). Aí o leitor pode questionar: língua e idioma são a mesma coisa… Tivesse eu escrito que falamos a mesma língua, mas não falamos o mesmo idioma estaria mais correto? Não vou adentrar em complexas questões da Linguística (não é minha especialidade, o que aprendi há 30 anos na Faculdade de Letras há muito já se perdeu nas teias da memória). Isso é lá com os estudiosos.

Símbolo inquestionável e indelével do antigo esplendor e domínio de Portugal, da Europa à América, da África à Ásia, a língua portuguesa é a quinta língua mais falada no mundo, e a terceira mais falada no mundo ocidental, por cerca de 260 milhões de pessoas! Das Descobertas até o terceiro milênio, evoluiu, naturalmente. Mas não tem unidade (haja vista a dificuldade de os portugueses aceitarem e implantarem o novo acordo ortográfico), é a única língua moderna que tem duas grafias reconhecidas internacionalmente: a europeia e a brasileira…

Pergunto-me se essa falta de unidade leva também a uma falta de unanimidade.

Sem saber a resposta,fui procurar uma luz. Três estrelas maiores iluminaram minha ignorância da Língua de Camões, última flor do Lácio; minha, nossa língua; minha, nossa pátria; minha, nossa identidade. Vou partilhá-las, quem sabe cheguemos, juntos, a um consenso.






Última flor do Lácio


( Olavo Bilac - 1865 -1918)


“Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura;
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

-
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
-
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
-
Em que da voz materna ouvi: "Meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!”







A Minha Pátria é a Língua Portuguesa

(Fernando Pessoa – 1888 – 1935)


“Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes - tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é - não - a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d'aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m'a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”



Língua
(Caetano Veloso - 1942)

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua? Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas!
Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomesNomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabée Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.


sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Enfrentando um novo desafio


Enfrentar desafios nunca se me afigurou como problema. Não sou uma pessoa covarde, enfrento o que der e vier. Pesem, embora, uma e outra voz dissonante. Claro que, por ser assim, estou sempre caindo, pois os obstáculos são muitos. Mas levantar depois das quedas me faz sentir mais forte - depois do primeiro embate - e desejosa e seguir em frente. Mesmo que me custe, mesmo que demore. Os meus últimos tropeços deixaram-me muitas marcas, e um cansaço permanente, não só físico, mas também emocional.

Eu precisava, preciso de uma catarse. Avessa a qualquer espécie de terapia, 'psico', 'holi', 'chis', ou qualquer que seja, com o devido respeito aos profissionais, e a quem procura nelas seu alívio, decidi colocar nas letras fatos recorrentes em minha memória (na verdade "tornar a", um dia deixo aqui uma crônica), ou comentar um e outro fato presente. Não seguirei uma ordem cronológica. Como numa colcha de retalhos, a recolher um pedacinho aqui, outro ali, crônicas anacrônicas. A memória, como os sentimentos, é atemporal. E, tendo vivido em dois mundo, no Novo e no Velho, também não delimitarei o espaço, eu vivo na dicotomia de ser, e de estar.

Houveram duas motivações para eu iniciar este blogue, uma vontade sempre adiada: ler o blogue da minha querida amiga nunca vista pessoalmente, mas sempre presente, Marcela Conor, e a leitura do livro "Quem me roubou de mim", do Fábio de Melo. Sim ele mesmo, pessoa linda, não só por fora, mas por dentro, riquíssimo ser humano, que tenho a grata satisfação de ter conhecido em tempos idos, quando ainda seminarista. Eu o vi tempos depois de ser ordenado, já com alguns Cds gravados, e ele continuava a mesma pessoa. Hoje, não sei. Mas se mudou, com certeza foi para melhor. Ele é um ser iluminado e verdadeiro. Quem já o olhou nos olhos sabe disso.

A Marcela, conheci na internet, ambas auto-exiladas em Portugal, ambas levadas pela mesma razão, o irrazoável, enfrentando os desafios de um mundo que não nos entende e, apesar de seus nativos se expressarem no mesmo idioma que nós, não falamos a mesma língua. E ela se tornou, sem o saber, mais que amiga, uma filha do coração. Ela continua lá, enriquecendo aquele mundo, com seu filhinho, e marido. Eu, decretei fim ao meu êxodo, ou reiniciei um novo, não sei, só o tempo dirá.

A eles, dedico este blogue. Um provalvemente nunca o lerá. A outra, espero que sim!

Este é o meu resgate. Vou enfrentar novamente o desafio de ser pessoa.

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