segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Festa do Rosário

É uma lembrança que me vem desde a mais tenra idade que a minha memória pode alcançar, meus 4, 5, 6 anos. Eu sabia que se aproximava a festa. Dias antes do foguetório da alvorada inicial, o nhé, nhé, nhééééééé interminável dos carros de boi vindo pela rua de terra batida, que passava ao lado de minha casa na esquina da praça, ouvia-se quando ainda vinham ao longe, lá de cima, daquele bairro pobrezinho onde eu não podia ir. Eu implorava à minha mãe para ir à rua, deixa mãe, posso mãe, deixa a menina ir, dizia meu pai, está bem, se a Judith estiver desocupada pode ficar com você lá na porta, mas não suja a roupa, olha a poeira, não saia do passeio, não solta a mão da Judith, olha o homem do saco!

E eu, aflita, em minha curiosidade, saía, maravilhada, a ver aqueles bois enormes, duas, três parelhas, às vezes apenas uma, os homens à frente, a incitar os bichos, com longas varas de ferrão, mulheres e crianças empoeiradas sentadas com as pernas penduradas, atrás dos carros, protegidos por entrelaçados de vime, cobertos de capim, cestos com galinhas a enfiarem bicos e olhos interrogativos para fora e a girar as cabeças curiosas. Vinham juntos, vinham separados, eram dias e dias, viravam à direita na esquina da casa senhorial da D. Vergida, sumiam lá para os fins da Rua Riachuelo (outro lugar proibido, só podia ir lá com a Judith, à benzedeira, mas nunca na época da festa).

Depois, eram as barracas de bugigangas. Parecia que brotavam do chão, da noite para o dia. Bonecas (horrorosas, lembro hoje, mas na época, como eu não podia tê-las, achava-as lindas!), iôiôs, violetas, carrinhos, balões, bilboquês, ah, que maravilha eu queria tanto um bambolê, e um arco, e um diadema e marias-chiquinhas para colocar nos cabelos… Não pode. Mas pode ir com a Judith e comprar algodão doce e pipocas para você e seu irmão. Judith, não vá com a menina ao lado de cima da praça, lá o ambiente não é bom, segura a mão dela, esses barraqueiros… Ver o parque de diversão? Não pode não (esqueceu que esfaquearam lá o filho do Batata do bar, Judith? E as mulheres da vida? Cochichava). E eu fitava com os olhos compridos o bambuzal da casa do Sr. Geraldo da D. Abadia, que escondia aquela coisa perigosa que devia ser o parque! (Será que tinha sangue, o que é mulher da vida, indagava a mim mesma, sem coragem de verbalizar).

O foguetório anuncia o dia do início das novenas a Nossa Senhora do Rosário. Todas as noites, da armação de capim no meio da praça, eu ouvia as músicas e a voz do locutor: olha o bingo, vamos entrar, agora é um prato de pastel e uma cerveja, olha o frango assado, dois patinhos na lagoa, 22, meia dúzia, 6, o patinho solitário, 2…

Festa de Nossa Senhora dos Pretos. Porque Nossa Senhora do Rosário dos Pretos? Deixa de ser boba, menina! Mas eu já sabia, era por causa da Congada! E por que a Congada só tem pretos? Que menina boba! Mas eu posso ir ver a Congada? Pode, vai ver pela janela, pela janela não quero, quero ir ver lá na praça. Na praça não pode, olha os barraqueiros, eles roubam crianças. Espera alguém desocupar. Com o coração na mão, eu saía, agarrada à mão da Judith, ou do meu pai. Que maravilha! As roupas de cetim, brancas e azuis, brancas e verdes, brancas e vermelhas, enfeitadas de fitas multicoloridas eram uma festa para os olhos. O canto gritado, os sons dos tambores, violas, sanfonas, violões, reco-recos, enfiavam-se pelos meus ouvidos, os passos pulados da dança, iam até a minha maravilhada alma infantil. Quanta dignidade no Capitão, na Rainha! Nunca pude ultrapassar o limiar da calçada da casa onde morava. Nem pude ir aos terços ou às novenas, nem ver de perto a dança e o canto junto ao cruzeiro de madeira, ao andor e ao altar da Santa depois da procissão final. Nossa Senhora, é verdade que a senhora escuta tudo? Por que eu não posso ir?

(E, nessa ânsia pela minha proteção, na falta de respostas às minhas indagações, nas proibições das pequenas coisas sem sentido, fui perdendo a minha inocência, na minha observação silenciosa do meu pequeno vasto mundo, mas também fez crescer em mim a busca permanente de Deus.)

Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Mãe de todos os Homens, de todas as condições e profissões, acolhei a todos nós no seu abraço de Paz. Pretos, brancos, amarelos, vermelhos. Homens e mulheres. Santos e pecadores, devolvei a todos a inocência dos olhos e da alma das crianças. Amém.


(A Igreja Nossa Senhora do Rosário deste post)

Uma nota: Ainda hoje, emociono-me e sinto um nó na garganta, quando ouço o batuque das Congadas. No ano de 1988, fui agraciada com o convite do Pe. Geraldo para ser uma das festeiras organizadoras da Festa do Rosário! Deu uma trabalheira, mas foi um sucesso. E a emoção maior foi quando os congueiros tocaram e dançaram em nossa homenagem, depois de o fazerem para a Santa! Foi difícil esconder as lágrimas!

Obrigada, Nossa Senhora do Rosário Mãe de todos os Homens!



"Nossa Senhora do Rosário dai a todos os cristãos, a graça de compreender a grandiosidade da devoção do Santo Rosário, na qual, à recitação da Ave Maria se junta a profunda meditação dos Santos mistérios da vida, morte e ressurreição de Jesus, vosso Filho e nosso Redentor.
São Domingos, apóstolo do rosário, acompanhai-nos com a vossa bênção, na recitação do terço, para que por meio desta devoção à Maria, cheguemos mais depressa a Jesus, e como na batalha de Lepanto, Nossa Senhora do Rosário nos leve à vitória em todas as lutas da vida; por seu Filho, Jesus Cristo, na unidade do Pai e do Espírito Santo.
Assim Seja.
Amém."
*
(Dia 7 de Outubro comemora-se o dia de Nossa Senhora do Rosário)
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Outra nota: quando eu tinha meus 8, 9 anos, descobri que uns moleques da vizinhança conseguiam abrir a porta lateral que dava à sacristia da Igreja. Escondida, às vezes eu ia lá, ficava o que me pareciam horas, (segurando o medo das andorinhas e dos morcegos que viviam lá, porque eu nunca sabia qual deles voava bem rente ao teto alto), e me maravilhava vendo a imagem de Nossa Senhora do Rosário com o Menino Jesus nos braços, e eu sentia ambos a me olharem em qualquer lugar que eu estivesse, o que me dava um misto de júbilo e culpa... (Nós nos mudamos da praça, e só voltei lá muitos anos depois).

4 comentários:

  1. Pôxa Margot, suas lembranças de infância assemelham-se muito às minhas...Sabe qual é a minha lembrança da mais tenra idade? Exatamente uma Coração de N.Senhora, em Bragança,cidade interiorana do meu Estado, onde morávamos à época.Queria tanto ser um anjinho daqueles...(Mas nunca consegui ser anjo algum!)Mas a minha melhor lembrança de infância, foi mesmo no Arraial de S.José, já de volta à minha cidade natal: Castanhal.Onde eu, acompanhada de duas "JUdiths", rs, fui à praça doida pra ter um daqueles balões de gás hélio...Mas meu pai nunca nos dava dinheiro (Pq n tinha mesmo!).E não é que no meio das duas moças a apertarem minhas mãoszinhas, tive coragem de ir perguntar ao moço dos balões, quanto custava um?_20 cruzeiros, disse ele ! Dai pra frente, começei a pedir insistentemente pra que meu Santo ouvisse minhas preces, para encontrar aquela soma e adquirir o balão.E não é que de repente, assim sem mais...encontrei a nota orvalhada e meio que enterrada em frente ao Cruzeiro ! Foi assim que aconteceu o primeiro milagra da minha vida...corri ao encontro do vendedor e comprei o mais bonito, daqueles que tinham uma forma esquisita e bem colorido! Daí por diante, descobri que tudo o que eu pedisse aos céus, conseguiria, rs !
    Um beijo cheio de fé, amiga!Partilhemos sempre nossas orações !
    Linda a sua postagem !

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  2. Que lindo o ocorrido com você, Aurora! Aprendemos cedo a caminhar com fé, graças a Deus! E também, eu penso que foi graças à Judith, prima da minha mãe que morava conosco e ajudava nas lidas da casa, e que era Filha de Maria (lembra disso?) é que desenvolvi minhas crenças, pois meus pais nunca foram religiosos (hoje em dia minha mãe é), e sempre que minha mãe deixava, eu ia com ela à missa na Igreja Matriz ou às reuniões da Irmandade.
    Mas sabe, meus pais naquela época também não podiam satisfazer essas vontades infantis (ai, se fosse hoje, com essa meninada do jeito que anda...).
    E a propósito, acredita que tiraram o Cruzeiro que havia em frente à Igreja N. Sra. do Rosário? Um absurdo, povo sem memória! Ainda me lembro das pessoas, em tempo de seca brava, irem regar os pés da cruz e rezar por chuva. E São Pedro abria as torneiras do céu, sim senhora!
    Beijo, amiga!

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  3. Ai gente!!
    Eu vim ler isso só hj, Domingo do Círio de Nazaré... porque estava com medo de lembrar mesmo.... estou com uma saudade que me mata. Nme tenho palavras. Que texto lindo... fui remetida às histórias de infancia da mamãe.

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  4. Obrigada, Tchela. A infância, como mtas coisas na vida, passam, e deixam saudade. São as tais "nuvens passageiras". Mas um dia voltam em forma de chuva, tá? A "Naza" (posso falar assim?) há de abençoar muito sua vida, e do pequeno Biel, e de todos a quem vc ama!
    bjo.

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